Episódios do despejo
O senhor viu a menina a tirar-lhe fotografias. E pregou-lhe dois socos, enquanto lhe torcia os braços para trás das costas. A máquina? Está na mochila. Vai lá e apaga! Ela foi e apagou. Voltou a guardar a máquina na mochila, bem pertinho dum portátil e de dois discos externos. O senhor era polícia e a menina estava a garantir a protecção dum espaço que o patrão do senhor abandonara. O senhor levou-a para a esquadra e pediu 4 voluntários para retirar todas as coisas de dentro do espaço que tinha invadido.
Retiradas todas as coisas e regressadas todas as pessoas que estavam com a menina e que com ela tinham sido detidas, deu-se por falta da tal máquina e dos seus novos amigos, sabe-se lá que laços se criam no aconchego duma mochila, o portátil e os irmãos discos. Na esquadra para onde tinham ido não tinham nada a ver com o assunto, só tinham emprestado as instalações, uma espécie de solidariedade fraternal entre duas forças policiais que são PSP mas são polícias diferentes, não sei se me entende....
As instalações da Polícia Municipal (PM), a tal que é PSP mas é uma polícia diferente, fazem questionar a necessidade de pedir instalações emprestadas, talvez seja apenas uma vingança da PM sobre a PSP, a que também é PSP mas não é diferente, uma espécie de revoltazinha mórbida por ser considerada menor. O senhor da portaria sabia do assunto da escola da Fontinha porque tinha visto na televisão. O comandante chegou, não deixou ficar o que chamam serviço e saiu. Não fosse a bendita tv e a nossa introdução tinha-lhe parecido surreal. Valha-nos que a vida dum recepcionista da PM lhe permite ter um olho na porta e outro na televisão. Voltem amanhã de manhã, o comandante entra às 9, pelo menos se a filha não fizer anos, e ele logo vê isso convosco, desculpem a forma apressada de os tratar, mas tenho que estar atento, não vá falhar um serviço noticioso.
Estávamos com sorte, uma senhora andava por lá, seria superiora do recepcionista, por alguma razão ela podia cirandar por escadas e corredores e ele, coitado, amarrado à cadeira, quase estrábico, mas não tão superiora como o comandante, claro, que esse até podia entrar às 7, despejar uns gajos, não avisar ninguém e ir para casa, não vá a filha fazer anos de véspera. O recepcionista explica-lhe o que queríamos, ela pergunta-nos o que queremos, não se sabe se por não confiar no seu inferior, se por necessidade de mais informação para poder ter um telefonema completo com o seu superior.
Nos filmes em que entra a polícia ouvem-se as duas vozes cada vez que há uma conversa telefónica. No comando da PM isso não acontece, mas também é a PM, que é PSP, mas é uma polícia diferente. O facto é que, duma conversa a dois, só se ouvia a voz feminina, eles dizem que ficamos com material deles, não sei de nada, entrei há bocado, ainda não recebi o serviço, mas não há acto de apreensão, o que é que queres que lhes diga?, amanhã falas com eles.
O dia seguinte
Nem todos os dias se entra às 7 e, mesmo que se entre, não são horas para se telefonar a ninguém, por muito ocupa que seja, o melhor é esperar pelas 9, é uma hora decente. Estou, olhe sempre ficamos com o computador, um aple, a máquina fotográfica, também de boa marca, e mais umas coisas que nos pareceram demasiado boas para poderem ser deixadas ali à mercê dos amigos dos detidos, neste caso tu com quem falo, achamos melhor levá-las, protegê-las, tirá-las do perigo duma mochila fechada na mão dum amigo para a segurança do comando da PM. Os legítimos proprietários que se desloquem cá e as coisas estão resolvidas.
Deslocaram-se e, com eles, foi mais gente. Gente com quem um outro recepcionista não sentiu uma empatia especial, já chega estar numa polícia que é PSP mas que é uma polícia diferente, ainda por cima como recepcionista, um olho na porta e outro na tv, inferior à senhora que ciranda, vejam lá. E ainda ia agora aturar gajos mal encarados, escuros, sabe-se lá se são assim de nascença ou se aquilo se pega, principalmente gente que vem de onde este vem, que o recepcionista da manhã já sabia o que se tinha passado 24 horas antes, já lhe deviam ter dado o famoso serviço, o que é de louvar quando se sabe que as notícias não se repetem durante tanto tempo.
As meninas, sim, digam lá ao que vieram, ah, sim, já sei do que falam, vou já chamar o comandante. Senhor comandante, venha cá por favor e o comandante veio, não em obediência ao recepcionista, mas seguro de que o seu inferior sabe que ele veio porque lhe apeteceu, coisa que o senhor da recepção demonstrou ao utilizar a expressão por favor. Continuava por lá o gajo mal-encarado, escuro, sabe-se lá se de nascença ou contágio, falava, respondia, reclamava por terem acautelado o material, não apresentava sinais do aconselhável silêncio submisso, prolongando uma falta de respeito que, à falta de argumentos, desencadeou a ameaça de exigir prova de propriedade do dito material acautelado, até não restar outra alternativa senão expulsar o indivíduo.
Lá para fora, disse o comandante, e não utilizou o por favor, não fosse o escurinho tomar o braço quando nem sequer o dedo lhe estava a ser dado. Não chega na soleira da porta, a soleira também é nossa, lá está, é o espaço privado duma entidade pública, lá fora quer dizer lá fora. Num dia leva para a esquadra pessoas que queriam ficar em casa e no dia seguinte expulsa das instalações policiais uma pessoa que tinha saído de casa para ir até lá voluntariamente. A justiça move-se por caminhos tortuosos. Não fosse o outro, também ele senhor, mas com letra maiúscula, escrever direito por linhas tortas e estava o caldo entornado.
Terá sido ele, o da maiúscula, que, como é sabido, partilha com o comandante o apego à protecção do que é frágil e que coloca nessa prateleira o género feminino, quem provocou uma súbita alteração de humor no superior da senhora que ciranda, vejam como abre a porta e permite que as meninas entrem primeiro, reparem como prepara as cadeiras para que se sentem, ouçam com atenção como o tom de voz se adocicou, as palavras parece que contêm mais sílabas, as frases saem quase como se de música de elevador se tratasse. Da intolerância do ponha-se lá fora! à compreensão, à curiosidade, à capacidade de ouvir, tudo num estalar de dedos. Demos o crédito ao senhor da maiúscula, mas poderá ele também estar no próprio comandante, funcionário zeloso que, em poucos minutos, se transfigura de polícia mau para polícia bom, assim dispensando despesas com o ordenado de mais alguém. Um trabalhador exemplar que personaliza o seu serviço e é capaz de, quase simultaneamente, tratar um homem de forma viril e duas mulheres de modo gentil. Merecia a maiúscula e não a poderá adquirir por estar reservada àquele cuja patente nunca se alcança, já o sabemos, e ficamos agora também conscientes de que, não fossem os momentos de aperto deste país, estaria um prémio de produtividade quase a sair do forno.
A polícia não rouba. Existe, aliás, para impedir o roubo ou, não o conseguindo, para prender os assaltantes. Às vezes leva pertences doutras pessoas sem que elas saibam. Mas não rouba. Porque é polícia e a polícia existe para impedir o roubo ou, não o conseguindo, para prender os assaltantes. Leva umas coisas valiosas, para as proteger. É criteriosa e isso é bom numa força policial. Não se deixa levar pela visão duma sala cheia de monitores, discos e outro material típico duma oficina informática. Nada disso. Abre uma mochila, retira de lá um portátil e dois discos externos, percebeu que havia ali um informático cuja ferramenta de trabalho ansiava por protecção, uma máquina fotográfica, consciente de que haveria um fotógrafo, e um caderno, que, sendo este um país de poetas, o mais normal seria haver algum entre os ocupas.
Na devolução, faltava um disco externo. Tão amigos que pensávamos que eram, afinal este traidor abandonou os outros e um abandono é sempre um abandono, mesmo, como é o caso, quando os que deixamos estão protegidos. Talvez a aproximação dentro da mochila não fosse tão desinteressada, quem sabe se não seria um disco assustado numa escola em acção que recuperou a sua autonomia assim que se viu na segurança do comando da PM. Não vá o diabo tecê-las, o melhor é a gente voltar à escola para ver se o disco está lá, isto disse-o o comandante, não necessariamente por estas palavras, que vocês são anarquistas e, se é verdade que construíram um projecto assim, são necessariamente desorganizados o suficiente para deixar um disco abandonado.
O dia a seguir ao dia seguinte
Nas cenas dos próximos capítulos não podíamos senão imaginar o senhor comandante a retirar a solda que colocou no portão e a destruir os muros de betão que ergueu no lugar das portas para ir em busca do disco perdido. Chegamos a pensar que seria isso que andaram a fazer 15 polícias nas imediações da escola na manhã seguinte ao despejo. Mas isto não é uma novela mexicana, com todo o respeito, é um filme português de autor, escola europeia, nada da previsibilidade hollywoodesca. E só no dia a seguir ao dia seguinte, alguém voltou a entrar na escola, quebrando a tal solda, não sabemos se derrubando o muro de betão para entrar no edifício, calculamos que sim, disse-nos o superior que o disco estava lá dentro, não temos porque duvidar. Parece tão lógico um polícia acreditar num ocupa que diz que ainda falta um disco, ao ponto de reabrir um edifício que tinha selado e emparedado 48 horas antes, como um ocupa acreditar num comandante que lhe leva material sem dizer água vai, quando ele diz que, realmente, ainda estava lá dentro, foi só dar umas marteladas, procurar numas centenas de metros quadrados por uma coisa de 30 cms… et voilá!
Foram, entretanto, avisados que ainda falta um cabo, dum lado uma cena que cabe aqui neste buraquinho e, do outro, uma ficha usb para ligar ao computador. Um cabo não é menos do que um disco, ainda por cima cabo e disco são inseparáveis, qual deles a panela, qual deles o testo, não quer o comandante ser processado por discriminação com pena acrescida por separação forçada. Espera-se a todo o momento uma nova reabertura da escola, uma procura exaustiva por um cabo, um reemparedamento capaz, que também é assim que se põe gente a trabalhar e que o país vai para a frente.
Mas, lá está, isto não é uma novela mexicana, com todo o respeito, é um filme português de autor, escola europeia, nada da previsibilidade hollywoodesca. Aguardemos.
...
Um post-scriptum, que seria um ante-scriptum se seguisse a cronologia: um dos senhores que invadiu a EsColA, na manhã de 10 de Maio, viu-se a ser filmado do interior do edifício. Assim que entrou na sala em que estavam a ser captadas as imagens exigiu a máquina e como lá não encontrasse disco algum não perdeu tempo a socar o portador da mesma, coagindo-o a entregar o que ali faltava. A apreensão teve direito a auto e o cartão com a memória da operação segue para o DIAP, informou a autoridade.
1 comentário:
Se todos roubam, porque a PSP e a prima-irmã da PSP, que também é PSP mas não se chama PSP, não há-de roubar ou, pelo menos, a jeito de: se pega, pega, se não pega foi graça? Enfim....
Enviar um comentário